É um sonho de muitas pessoas poderem constituir famílias e terem filhos, mas, por vezes, condições de saúde atrapalham e/ou impedem a concretização desse desejo. Assim, para muitos, a possibilidade de gerarem herdeiros passa pela necessidade de submissão ao procedimento de fertilização in vitro (FIV), que é um tratamento médico que oferece esperança e possibilidade de realização do sonho da maternidade/paternidade.
Mas na hora de recorrerem à técnica, muitas famílias encontram um grande obstáculo, pois o procedimento médico pode ter um custo muito elevado, tornando difícil (ou até impossível) para algumas pessoas arcarem com todas as despesas. E recorrer ao SUS, normalmente, leva muitos anos – algo contraditório para muitas pessoas, cujo relógio biológico está perto da contagem final.
Alguns cidadãos recorrem a uma última alternativa, que é buscar resgatar o saldo do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) para custear o procedimento, mas esbarram numa negativa administrativa da Caixa Econômica Federal, sob a alegação de que esta hipótese de liberação do dinheiro não está prevista na legislação.
Assim, muitas famílias acabam desistindo do procedimento, e renunciando ao sonho de toda uma vida. Só que essas pessoas não sabem que uma solução possível para a realização do sonho da maternidade/paternidade é recorrer judicialmente ao resgate do saldo do FGTS para garantir o custeio da fertilização in vitro.
Hoje, as hipóteses de levantamento do saldo do FGTS estão elencadas no artigo 20 da Lei nº 8.036/1990. E, teoricamente, a fertilização in vitro não se enquadra nesse rol de itens.
No entanto, com o passar dos anos, a jurisprudência dos Tribunais passou a interpretar este rol de itens como de caráter exemplificativo – o que significa dizer que as hipóteses ali dispostas seriam as mínimos possíveis, mas que outras não poderiam ser descartadas, se esbarrarem em emergências, doenças graves ou miserabilidade:
MANDADO DE SEGURANÇA. REMESSA OFICIAL. SALDO FGTS. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. SAQUE/LEVANTAMENTO DE SALDO DO FGTS. REPRODUÇÃO ASSISTIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PROTEÇÃO À FAMÍLIA. LEI 8.036/90. ARTIGO 20. (IM) POSSIBILIDADE. I. O direito do trabalhador à movimentação de conta vinculada ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço não é amplo e irrestrito, estando autorizada nas hipóteses elencadas na Lei n.º 8.036/1990. II- Considerando a iterativa jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça e desta E. Corte no sentido de permitir o saque dos valores depositados, a fim de que seja atendida a finalidade social do Fundo e atenta aos princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção e promoção da família e ao direito à saúde, devem os valores da conta vinculada da parte requerente ser imediatamente liberados de modo a fazer frente às despesas necessárias ao tratamento requerido. (TRF-4 – AC: 50043311720224047114 RS, Relator: SÉRGIO RENATO TEJADA GARCIA, Data de Julgamento: 26/04/2023, QUARTA TURMA)
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. REMESSA NECESSÁRIA. FGTS. LIBERAÇÃO DE VALORES. REPRODUÇÃO ASSISTIDA. CUSTEIO DE TRATAMENTO DE FERTILIZAÇÃO IN VITRO. POSSIBILIDADE NO CASO CONCRETO. 1. O rol do artigo 20 da Lei 8.036/1990 é exemplificativo, podendo ser concedida a liberação dos valores da conta do FGTS em outras situações, mediante análise das particularidades do caso concreto. 2. A autora possui “infertilidade primária” e “baixa reserva ovariana”, de modo que as moléstias a que está submetida em razão de sua condição habilitam-na ao enquadramento nas hipóteses do referido dispositivo. 3. Sentença mantida. (TRF-4 – REMESSA NECESSÁRIA CÍVEL: 50158539620214047107, Relator: LUÍS ALBERTO D’AZEVEDO AURVALLE, Data de Julgamento: 06/04/2022, QUARTA TURMA)
LEVANTAMENTO. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PROTEÇÃO À FAMÍLIA. REPRODUÇÃO ASSISTIDA. FINALIDADE SOCIAL DO FUNDO. Considerando a iterativa jurisprudência do Colendo Superior Tribunal de Justiça e desta E. Corte no sentido de permitir o saque dos valores depositados, a fim de que seja atendida a finalidade social do Fundo e atenta aos princípios da dignidade da pessoa humana, da proteção e promoção da família e ao direito à saúde, devem os valores da conta vinculada da parte requerente ser imediatamente liberados de modo a fazer frente às despesas necessárias ao tratamento requerido. (TRF-4 – REMESSA NECESSÁRIA CÍVEL: 50198995720184047100 RS 5019899-57.2018.4.04.7100, Relator: VÂNIA HACK DE ALMEIDA, Data de Julgamento: 18/09/2018, TERCEIRA TURMA)
Este posicionamento dos Tribunais tem seguido a linha de privilegiar e destacar a finalidade social do programa FGTS, notadamente quando estão em jogo os direitos individuais à vida, à saúde e à dignidade do cidadão.
E no caso da fertilização in vitro, muito embora a situação possa não envolver uma doença que coloque em risco à vida do cidadão, a Justiça tende a interpretar que aquele cenário se assemelha a um tratamento em razão de doença grave, previsto no art. 20, XIV, da Lei n° 8.036/1990, uma vez que todas as circunstâncias que o envolve tem o potencial de abalar a saúde psíquica daquela família, uma vez que a falta de acesso ao recurso impediria a realização do sonho de ter filhos.
Se analisarmos a situação pelo prisma da Constituição Federal, temos que a nossa Carta Magna considera a dignidade da pessoa humana como princípio estruturante do Estado Democrático de Direito, o listando no seu art. 1º, inciso III, tamanha a relevância desse preceito para nortear a condução de nossa sociedade.
Ademais, o art. 5° do Decreto-Lei n° 4.657/42 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro) aponta que o julgador deve aplicar a Lei visando o atendimento dos fins sociais a que ela se dirige, e às exigências do bem comum.
Com isso, ainda que o caso da fertilização in vitro não esteja previsto na legislação, o ordenamento jurídico – se analisado de forma sistemática e baseada em princípios -, bem como a própria jurisprudência, entendem que o rol do artigo 20 da Lei nº 8.036/1990 não deve ser enquadrado de forma taxativa (ou restritiva), de forma que deve a Justiça autorizar a liberação do saldo do FGTS fora das hipóteses legais.
O tema é tão relevante para a sociedade que neste ano de 2023 passou a tramitar na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 55/2023, proposto pelo deputado Marangoni (União/SP), que tem como objetivo alterar a Lei nº 8.036/ 1990, para incluir na legislação do FGTS a hipótese a movimentação da conta vinculada do trabalhador para o custeio do tratamento de reprodução assistida. Uma vez aprovada essa legislação, encerra-se em definitivo toda e qualquer discussão sobre a possibilidade ou não de levantamento.
Portanto, saiba que a possibilidade de resgate do saldo do FGTS para o custeio de fertilização in vitro através de uma ação judicial é uma alternativa concreta, que pode viabilizar o acesso ao tratamento para pessoas que enfrentam dificuldades financeiras.
Existe posicionamento judicial relevante, no sentido de que deve ser sempre permitido ao cidadão o saque dos valores depositados no FGTS, a fim de que seja atendida a finalidade social do fundo, em observância aos princípios da dignidade da pessoa humana e ao direito à saúde – afinal, não se pode imaginar uma hipótese mais concretizadora da dignidade humana como o do alcance da maternidade/paternidade.